Johnny Alf: rapaz de bem


Johnny-Alf“Ah! Se a juventude que esta brisa canta ficasse aqui comigo mais um pouco, eu poderia esquecer a dor de ser tão só pra ser um sonho…”. Os famosos versos de “Eu e a Brisa”, de Johnny Alf, falam mais sobre a vida do compositor do que se imagina. Reunindo vários dos principais alvos de preconceito da sociedade da época – era negro, pobre, homossexual, músico e alcoólatra -, o pianista sofria de solidão crônica, seja por seu caráter naturalmente introspectivo, ou pela paixão pela noite, que ao mesmo tempo em que o aproximava das pessoas, o afastava do convívio delas. Sua arte, porém, o tornou inesquecível e, hoje, é considerado um dos mais importantes precursores do movimento de maior penetração internacional da música brasileira: a bossa nova!

Johnny Alf nasceu Alfredo José da Silva no dia 19 de maio de 1929, em Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Seu pai, Antonio José da Silva, militar, faleceu durante a revolução de 1932, e a mãe, Inês Marina da Conceição, por conta disso, foi trabalhar em uma casa de família. Talvez seu destino tenha sido traçado ali. A família custeou seus estudos, desde o primário até o segundo ano do científico. Com nove anos de idade, o pequeno Alfredo começou a receber aulas de piano clássico da professora Geni Borges, amiga da família. “O que estudei de música clássica – que já era do meu gosto musical – teve pouca influência depois”, contou em entrevista o músico, “nos primeiros anos de piano a gente segue aquele ritmo de peças tradicionais, mais Chopin que Debussy”.

A grande influência, na verdade, veio dos filmes musicais de Hollywood, que traziam canções e composições de George Gershwin, Irving Berlin e Cole Porter, entre outros. Ir ao cinema era o que inspirava o pianista a ir ao instrumento e tentar criar algo, inventando melodias e tentando reproduzir, a seu modo, o estilo que admirava. A família que o acolheu, tinha planos traçados para ele: seria funcionário do escritório de contabilidade da Leopoldina
Railway. Mas, por volta dos quatorze anos, formou um conjunto com amigos de Vila Isabel. O roteiro de fim de semana, então, era de peregrinação até a Praça Sete, ao Clube Andaraí, onde o grupo se apresentava. Em uma das ocasiões, conheceram uma cantora amadora, de voz suave, chamada Adelina, mais tarde conhecida como Dóris Monteiro. Estudando no Colégio Pedro II, entrou em contato como o pessoal do Instituto Brasil-Estados Unidos, um curso de inglês no centro, que o convidou a participar de um grupo artístico, já que conhecia um pouco a língua e
muita da música estadunidense. Ali ganhou o apelido de Alf, vindo da mania americana de simplificar tudo. E em uma apresentação na Rádio Ministério da Educação, no programa de jazz de Paulo Santos, uma garota americana sugeriu Johnny para completar o Alf, porque era um nome “muito popular na terra dela”, segundo o próprio compositor.

Alfredo chegou a trabalhar no escritório de contabilidade da Estrada de Ferro Leopoldina, onde aproveitava os momentos livres no horário de serviço para escrever música. Com o grupo do Instituto Brasil-Estados Unidos fundou um clube para promoção e intercâmbio de música brasileira e norte-americana, que realizava sessões semanais para analisar orquestrações, solos e composições, além de realizar jam-sessions, excursões, conversações musicais e sessões cinematográficas, entre outras atividades.

DickFarneyClubREDUZQuando o pianista e cantor Dick Farney retornou dos Estados Unidos, em 1949 – trazendo muitos discos novos -, ficou sabendo do clube e se tornou sócio. A partir de então, a entidade passou a se chamar Sinatra-Farney Fan Club “fundado em 3 de fevereiro de 1949, sede à Rua Almirante Gomes Pereira, 53, Tijuca”,na verdade um porão cedido pela mãe de uma das sócias, onde havia um velho piano e uma bateria. Outros músicos eram sócios do clube, entre eles João Donato, Paulo Moura, Nora Ney, Doris Monteiro, Bebeto Castilho, Tom Jobim e Luiz Bonfá. Era ali que Johnny Alf começou inspirar todos com suas harmonias jazzísticas. Tendo o cool jazz e a música erudita como ferramentas, apreciava o estilo do trio de Nat King Cole, o piano de Lennie Tristano e o sax de Lee Konitz. De certa forma envaidecido com seu público nascente, aos poucos começou a trocar a noite pelo dia, já que, à época, era cabo do Exército. Chegava da Escola de Sargentos das Armas de Realengo, às 9 horas da noite, trocava de roupa e ia para o clube, de onde saía, feliz, por volta de 4 da manhã, trazido pelo ator Cyll, irmão de Dick Farney, para nova troca de roupa e de ambiente: voltava ao quartel antes do amanhecer. Isso começou a incomodar a família que o criou para ser “funcionário da Leopoldina” ou “professor de inglês”. Apesar disso, Johnny continuou investindo em sua carreira e, em 1952, apresentado por Dick Farney e Nora Ney, foi contratado pelo radialista e apresentador César de Alencar, que acabava de inaugurar sua cantina – a Cantina do César, em Copacabana -, e precisava de um pianista.

 

O início da solidão

Infelizmente a alegria do músico não foi compartilhada pela família, que exigiu que ele deixasse a carreira ou se mudasse dali. Inconformado – até mesmo com a mãe, que tomou partido pela família adotiva -, Johnny Alf deixou a casa em que foi criado para ir morar no Rio Comprido e, depois, em Copacabana. “Tive de sacrificar um lado para
conseguir o outro”, confessou o pianista. “A despedida não foi numa boa. Isso influenciou bastante minha obra e foi essa solidão que me deu a segurança que tenho.”

Na Cantina do César tocava e cantava. Seus ouvintes agora incluíam o Maestro Radamés Gnatalli e, entre outros, João Gilberto. O repertório de sucessos – Caymmi, ou os êxitos dos cantores Lúcio Alves, Dick Farney e Gilberto Milfont – era também muito apreciado por Dolores Duran, da boate Acapulco, que ia vê-lo depois do trabalho com a cantora e compositora Dora Lopes. Outro ouvinte entusiasmado, o capitão do Exército Victor Freire, levou Mary Gonçalves para ouvir a apresentação do pianista. A atriz, que tinha sido Rainha do Radio em 1952 e ia lançar-se como cantora, estava escolhendo repertório. Para o LP Convite ao Romance, escolheu três composições: “Estamos sós”, “O que é amar” e “Escuta”. Nessa época, Alf já bebia muito, e o sofrimento por estar longe da mãe e da família, aliado a um sentimento de rejeição, o invadia.

johnny-alf-rapaz-de-bemEm compensação, as boas oportunidades começaram a surgir. Foi convidado a integrar como pianista o conjunto que o violonista Fafá Lemos formou para tocar na elegante boate Monte Carlo, do “rei da noite” Carlos Machado, e Ramalho Netto, produtor da Sinter, quis que ele gravasse um 78 rotações, o primeiro de sua carreira. Apesar de
instrumental, o disco trazia novidades. O conjunto era formado por Alf ao piano, Vidal no contrabaixo e o violonista e compositor Garoto, substituindo Laurindo de Almeida, que não pôde gravar porque estava indo para os Estados Unidos. A formação, muito utilizada no jazz, mas incomum no Brasil, foi uma surpresa interpretando “Falsete”, do
próprio Alf, e “De Cigarro em Cigarro”, de Luís Bonfá. Mais tarde, revezando-se com o pianista Newton Mendonça, tocou na boate Mandarim, e depois no Clube da Chave e nas boates Drink e Plaza, onde atraía fãs como Ary Barroso e Tom Jobim. De seu repertório, duas composições começaram a se destacar, “Céu e Mar” e “Rapaz de Bem” que, escrita por volta de 1953, é considerada, em termos melódicos, harmônicos, estruturais e temáticos, revolucionária e precursora da bossa nova. “Quando vim morar em Copacabana, morando sozinho, era um deslumbramento só.  Enchia a cara, ficava na rua até as tantas”, confessou o músico. “A bebida me deixava um pouco à parte dos problemas que eu tinha. Bebia muito por causa da questão da família, ficar afastado do pessoal, isso me marcou muito, eu ter sido criado por eles, e depois ter de me afastar por causa da profissão. Daí nasceu o “Rapaz de Bem”.

No segundo disco, Alf estreou como cantor. Apesar da qualidade dos músicos, não emplacou, assim como o primeiro. Parte da culpa é creditada aos produtores, mas o temperamento introspectivo e tímido do pianista muito contribuiu para o fracasso. Em 1955, quando o movimento da bossa nova começava a se fortalecer, foi convidado por Heraldo do Monte para inaugurar a boate A Baiúca em São Paulo. Mudou-se sem nem mesmo avisar o dono do Plaza, onde era a principal estrela. De lá iria para o bar Michel, e mais uma vez se apresentaria com músicos do início da bossa nova, mas de São Paulo: o violonista Paulinho Nogueira e os baixistas Sabá e Luís Chaves. Depois de gravar, no Rio
de Janeiro, um 78 rotações com “Rapaz de Bem” de um lado e “O tempo e o vento”, no outro, sua carreira se consolidou. Em São Paulo, mudou-se sem aviso nem convite para a casa de Cesar Camargo Mariano, onde
viveu por nove anos. “Gostei demais dessa família”, explicou à época.

Em 1961, foi convidado para gravar seu primeiro LP, em que registrou “Ilusão à Toa”, uma de suas favoritas. Depois, foi cogitado  para participar do famoso concerto no Carnegie Hall, mas perdeu a oportunidade por estar afastado do pessoal do Rio. “Fiquei em São Paulo, bastante desligado deles. Enchia a cara, acordava naquela ressaca. Eu era o rei de chegar atrasado”, confessa.

johnnyalfVoltou ao Rio de Janeiro, obrigado, por volta de 1962, por causa de uma denúncia de que não tinha carteira  profissional de músico. Ali, trabalhou no centro do movimento: o Beco das Garrafas, em Copacabana. Iniciou no
Bottle’s Bar revezando com Tamba Trio, Sérgio Mendes, Luís Carlos Vinhas e Sílvia Teles. E formou um dos melhores conjuntos de sua carreira, com o baixista Tião Neto e o baterista Édison Machado. Do Bottle’s, passou ao Little Club e ao elegante Top Club. Apresentava-se alternadamente com o conjunto de Moacir Silva e, mais tarde, no Manhattan, com Leni Andrade. Apesar do sucesso na noite, as vendas de discos nunca decolaram. “Isso talvez tenha
sido consequência de meu temperamento. Sempre estive afastado da patota, porque sou muito desconfiado das pessoas. Os problemas que tive na vida me criaram dificuldades de relacionamento. Em meio de grupinho, nunca
estava seguro. De algumas coisas da bossa nova eu realmente tomei parte, fui chamado. Por exemplo, o show da Arquitetura, em 59. Mas dizer que eu vou pra lá para saber como é, como é que está, isso não faço. Não tenho esse jeito”, dizia o músico.

Depois de mais algumas temporadas em boates e um terceiro LP, na gravadora Mocambo, passou a se apresentar menos na noite e mais em cidades do interior de São Paulo. Descobriu, com isso, que a noite e os ambientes que frequentava estavam entre os motivos de sua permanente depressão. Inspirado por estas novas sensações, Johnny
compôs uma música a pedido de um amigo que ia casar. Ela serviria de fundo musical, mas na igreja foi recusada, “para não quebrar a praxe do cerimonial religioso”. A música foi engavetada sem título e sem letra até que Johnny Alf foi procurado pela cantora Márcia. Ela queria inscrever-se no Festival da Record de 1967, e precisava de uma música. Alf tirou da gaveta, colocou título e letra e entregou a ela “Eu e a Brisa” que, apesar de desclassificada
nas eliminatórias, foi consagrada mais tarde. Descobrindo as religiões afro-brasileiras, na década de 1970, encontrou um pouco de paz e se dedicou a outra etapa de sua carreira de compositor, em que escreveu canções como o “Kaô Xangô”, “Promessa pra Calunga” e
“Canção da Demanda”.

04Johhny Alf faleceu em 4 de março de 2010, aos 80 anos, em um hospital na cidade de Santo André, em São Paulo, onde, durante três anos, se tratou de um câncer de próstata. Ele vivia em uma casa de repouso na cidade.


Legado

Dizem alguns autores que toda a história da bossa nova começou com Johnny Alf, já que João Gilberto e Tom Jobim, além de Carlos Lyra, Roberto Menescal, Sérgio Ricardo e o próprio Vinícius de Moraes sempre iam às boates do Rio para ouvir o toque e o canto diferente do pianista. Ao longo de mais de 50 anos de carreira, deixou uma discografia que, se não foi reconhecida à época de seu lançamento, é hoje considerada antológica. E, obviamente, como tantos outros gênios deste país, foi relegado e esquecido, não se prevalecendo do tanto que contribuiu para o desenvolvimento de nossa música popular e de seu gênero mais cultuado: a bossa nova.

 

 

 

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